domingo, 10 de julho de 2011

A caixa

Na rua onde moro a calçada fica frequente e perigosamente molhada pela chuva fina ou “cacimba” que nos tem visitado na maioria destes dias de Janeiro. Tem sido um mês atípico em termos de clima, um mês em que dias soalheiros alternam com estas visitas envergonhadas da chuva. Tento passar indiferente sob a mesma quando saio à rua e tento colmatar a solidão em que vivo mergulhado através do contacto com a demais população das redondezas. População que sempre tendi a desprezar, nunca a valorizar. Nunca consegui retirar benefícios óbvios da sua existência, pelo menos até hoje. Tão inócua, tão vaga, tão… vazia… não me consigo rever nesta comunidade. Tenho dificuldade em comunicar com ela, sinto renitência em mergulhar nela.
Nada fiz para mudar esta situação. Nada tentarei fazer. Sem planos para o futuro e sem memória do passado preocupo-me com o dia a dia, hora a hora, minuto a minuto… vivendo no mais profundo egoísmo que, até prova em contrário, me confere uma vaga sensação de felicidade. Não necessito dos outros. Nunca necessitei (penso eu, uma vez que a ausência de memória de um passado recente me impede te ter certezas).
São as memórias mais distantes que me atormentam, especialmente à noite. Confundo a virtual realidade da minha infância e adolescência com os sonhos que todas as noites me fazem companhia. O crescimento, na companhia dos meus pais, a escola, a puberdade… e depois tudo se começa a desvanecer… até ao dia em que conheci o amor da minha vida… apenas para tudo se esfumar. Não sei se foi real ou não. Apenas sei que vivi (sonhei?) a mais absoluta felicidade…. Mas uma noite acordei e era um sonho… Nunca a conheci. Não sei se ela existe. E se existe, não sei se ela sabe que eu existo. Essa angústia tolda-me o cérebro e é minha companhia permanente. Todas as noites e todos os dias.
Hoje as gordas do jornal não me trazem nada de novo. As mesmas intrigas de sempre, a mesma falta de parcialidade, a mesma tendência para valorizar o que não tem valor…Enjoo com tudo isto. Procuro o cesto do lixo mais próximo e cumpro o meu dever.
Está frio, muito frio. Um frio que se entranha nos ossos e que constringe os movimentos. Apresso o passo. Não paro de pensar nela. De pensar no meu passado que não sei se algum dia existiu. Não sei como vim aqui parar e isso perturba-me. Foda-se, ela era linda…. Era linda… Como foi possível perdê-la? O meu pior pesadelo tornou-se realidade.
A chuva intensifica-se. Escureceu bastante. Não consigo livrar-me dos meus pensamentos mais sombrios. Mas estou quase em casa….
Mesmo ao virar da esquina, ao tentar esquivar-me da indiferença de todos os rostos que se cruzam comigo, deparo com uma jovem rapariga sentada, à chuva, num dos pequenos e velhos bancos de jardim que pontuam nesta parte da cidade. Era um daqueles típicos bancos de jardim, verde, mas já com a oxidação do metal a denegrir o seu aspecto outrora elegante. Não consigo evitar de olhar para ela. A sua imagem magnetiza-me. Tento olhar os seus olhos mas ela tem a cabeça baixa. Nas mãos segura algo que não consigo discernir. Paro uns metros mais à frente e sou forçado a voltar atrás. Aproximo-me lentamente dela. Deverá ter uns 8, talvez 9 anos. É morena, de aparência bem tratada e cuidada. Vejo agora o que segura nas mãos: é uma pequena caixa de madeira de aspecto bastante antigo. Ela segura a caixa e limita-se a observá-la. Fiquei curioso, mas também receoso. Não sei se estabeleça contacto com ela ou não. Tento aproximar-me ainda mais, sem que ela repare em mim. Sinto-me num filme de série B, e especulo comigo próprio que mistérios ou que horrores contém a pequena caixa. No entanto, sem que me tenha apercebido, por esta altura já a rapariga fixou os seus olhos nos meus. Senti um estremecimento, tentei de imediato desviar o olhar mas não consegui. Ambos olhamos os olhos um do outro por uns bons 5 minutos. Sem dizer nada. Sem uma palavra. De repente, ela levantou-se e pegou-me na mão. Ela estava gelada. Mas senti-me reconfortado pelo seu contacto. Pousou a caixa de madeira no banco e começou a guiar-me, segurando sempre a minha mão, por ruelas que nunca antes tinha percorrido, que nem sabia existirem. Caminhámos durante imenso tempo, sempre por ruas diferentes, aparentemente sem destino. Enquanto isto, a chuva parou, as nuvens dissiparam-se como por magia e começaram a aparecer as estrelas.
Finalmente ganhei coragem para lhe perguntar: “O que tem aquela caixa?”. Ela olhou para mim e sorriu, mas nada respondeu. Continuámos a andar. Levou-me até uma rua aparentemente deserta, e finalmente parou de andar. Olhou-me novamente nos olhos, e num momento que parecia livre dos constrangimentos da passagem do tempo, disse:
“O teu percurso até aqui nada tem que significar. O que fizeste até hoje, o que sentiste, o que pensaste, o que viveste, o que sonhaste, será completa e infinitamente inútil perante a imensidão de caminhos que a vida te proporciona. Escolhas o que escolheres, parecer-te-á sempre o mais errado. Escolhas o que escolheres, e estarás um passo mais próximo da morte, um gesto mais afastado da vida. Vive o presente como se não tivesses mais um segundo de vida. E então reencontrarás quem mais amas.“
Depois, virou-me as costas e começou a caminhar na direcção oposta. Eu fiquei imóvel, sem conseguir dizer nada, completamente absorto do ruído estridente provocado pelo gato que entretanto derrubara um caixote do lixo ou das sirenes de uma ambulância que acorria para socorrer alguém em apuros algures na cidade.
Ao chegar a fundo da rua, a menina parou, virou-se para mim e disse: “ A caixa não tinha nada, estava vazia”.
E eu ali continuei, paralisado, no centro daquela metrópole polvilhada de vidas mais ou menos inúteis, protegido sob a imensidão do lençol de estrelas que sobre nós se estende até ao infinito. Apenas consegui sorrir.

[07-09-2009]