terça-feira, 30 de agosto de 2011

Dilema

Confrontaste-me com o dilema que te fechava as portas da liberdade e consequente felicidade. Não sabias se estarias tu errada, se o resto do mundo. Fiquei a pensar numa resposta célere e consequente, mas não a encontrei. Ainda caminhei pelos caminhos retorcidos da minha mente, e subi ao cume da mais instantânea imaginação. Nada encontrei. Desço agora a teus pés para te dizer que nada te trago a não ser as minhas duas mãos vazias, mãos que podes optar por agarrar e apertar, puxando o meu corpo para te abraçar numa eternidade.
Não tolero a angústia que se apodera de ti, mas também não a consigo aniquilar. Não a posso ignorar mas escondo-a muitas vezes de mim, por entre as sombras dos meus dias, em que cedo prioridade às mais infames futilidades. Espero assim, sem argumento válido, nem testemunhas da minha defesa, que me possas perdoar.
No meu caminho até ti não me deparei com paisagens deslumbrantes ou criaturas enigmáticas, mas apenas com o pó e as pedras de uma estrada milenar, na qual segui as minhas próprias pegadas. Tropecei vezes sem conta nas minhas atitudes ora submissas, ora irreflectidas. Os meus erros nunca os deixarei na estrada, seguirão sempre comigo.

domingo, 21 de agosto de 2011

Oceanos

A distância entre nós começou por ser do tamanho de um oceano. Facilmente percebi que esse oceano era tão navegável quanto as correntes e marés que me puxavam para ti. Do oceano se fez nada, e do desconhecido se fez ansiedade. Ilustrei o meu desejo por ti em segredos que ainda hoje estão por desvendar, e anunciei ao outro lado do mundo que o dia chegaria em breve, acompanhado pela luz que resplandecia no horizonte. Fomos ingénuos e fomos puros. Brincámos como crianças por entre palavras inócuas e declarações de sinceridade.
Depois esperámos apáticos que o sol carregasse a sua energia para lá desse oceano, apenas para que de novo a escuridão se abatesse e com ela trouxesse a incerteza. Continuei a segurar a tua mão, mesmo que não o sentisses. Na noite senti o palpitar das tuas veias e a visa que corria em ti. O teu palpitar confundia-se com o meu, os nossos corpos fundiram-se em sentidos. Mesmo quando não te apercebias, eu estava lá. Mesmo que agora não o saibas, estou contigo.
Une-me a ti a maré que sempre me transportou, que me levou ao teu reduto. Não consigo explicar a energia dessa maré. Apenas me vou deixando levar. Por vezes, pode parecer que a maré não me trará de volta. Mas ela sabe o que faz. Eu confio nela. Sei que ainda estás aí para me recolheres quando eu for abandonado na praia. Sei que me vais enxugar e dar de beber o teu amor. Sei que me reconfortarás e poderei adormecer nos teus seios. Sei que enfrentaremos mais um anoitecer com a confiança de quem sabe que um novo dia se seguirá.

domingo, 10 de julho de 2011

O nosso percurso

Venho aqui hoje para te abraçar. Sei que lamentas as minhas ausências prolongadas e anseias pelos meus regressos invariáveis. Da última vez peguei-te na mão e conduzi-te até ao chão do quarto, onde as lágrimas que derramaste formaram um oceano que separava os continentes da realidade e da sanidade. O meu nome é solidão, e estou aqui para te acompanhar ao desejo.

Espreito o teu corpo nu que surge como uma silhueta em contra-luz ao entardecer. Os percursos que nele tracei recordam-me recorrentemente momentos, compostos de horas infinitas, de desejo e paixão. Ontem entregámos as nossas almas para além de onde deixámos os nossos corpos. Hoje partilhamos a angústia da dúvida e da incerteza. O meu nome é desejo, e venho para te levar ao fundo da rua onde está o remorso.

Percorri os meandros do teu pensamento e não te larguei enquanto não me amaldiçoaste. Recordei-te tudo aquilo que querias esquecer e fiz-te esquecer tudo aquilo que te fazia feliz. Hoje não será igual a ontem. Voltarás a olhar para trás e verás que as cinzas se mantêm, não serás capaz de reconstruir algo. Eu sou o remorso. Agora olharás em frente e enfrentarás a incerteza.

Conduziram-te até mim, e eu estou aqui para escutar a tua confissão. Confessarás que o amor para ti já não é mais do que um conjunto de impulsos sintetizados e expressões faciais fabricadas pelo inconsciente. Confessarás que a paixão para ti já deixou de ter significado, e que as emoções que ela te trás te causam indiferença. Confessarás que o abstracto raptou os teus significados e convicções, e que elas não mais são para ti do que miragens. Eu confesso-te que nada mais te poderá fazer regressar. Eu sou a incerteza, e trago até ti a angústia para te acompanhar ao resto dos teus dias.

O jantar

Era impossível disfarçar a ansiedade. Esfregava as mãos ásperas e calejadas uma na outra vigorosamente, não conseguia parar quieto. Deveria acontecer precisamente o oposto, afina de contas estava prestes a conhecer o futuro genro, mas o facto deste ser recém-formado em economia... Enfim... Alguém com estudos superiores... Não deixa de causar num simples agricultor alguma ansiedade e receio de... Enfim... Dizer algo impróprio.... Alguma calinada... Ou de fazer algo com maus modos ou de forma pouco educada.
"este jantar foi uma ma ideia", pensou para com os seus botões. "só espero não deixar a minha filha envergonhada".
Embrenhado nestes pensamentos, assustou-se com o ruído seco do rodar da fechadura. A porta abriu-se e os pensamentos receosos depressa deram lugar ao encantamento e deslumbre ao contemplar a filha, maravilhosamente vestida e maquilhada, que acabara de entrar na sala. Já não a via há 3 meses. Os estudos eram motivo de prolongadas ausências que acentuavam as saudades. Logo atrás, surgiu um rapaz alto e elegante, sorridente e aparentemente confiante. Era aquela a figura que representava, possivelmente, o futuro genro. Boa apresentação... Culto... Inteligente... E intimidatório, perante a pouca escolaridade daquele humilde homem do campo. Carlos trindade... Muito prazer... Arménio Lopes... Prazer... Replicou o anfitrião. Com o decorrer das apresentações e seguidamente do jantar, o Sr. Arménio ganhava cada vez mais confiança. "O rapaz ate parece simpático" , pensou. Os temas de conversa sucediam-se naturalmente, de forma fluida e despretensiosa. Os olhares ternurentos e apaixonados que o casalinho trocava enternecia o agricultor alentejano, viúvo há pouco mais de um ano. A mulher havia sido apanhada por um cancro, que não lhe dera muitas possibilidades de resistir, tendo sucumbido em menos de seis meses. "Quem me dera que a minha Rosário estivesse aqui".
Entre uma e outra garfada de migas, falava-se agora do trabalho do jovem economista. "É verdade Sr. Arménio, o trabalho lá em Lisboa não me da tréguas. Tenho imensas tarefas a meu cargo e que me ocupam muito tempo. Veja bem que ainda esta semana vi o estudo que tenho vindo a desenvolver, sobre a instabilidade actual dos mercados, quase ser comprometido por uma falha no software de analise de dados que utilizo como base desse estudo". o agricultor bebeu mais um golo de vinho, enquanto tentava assimilar todas aquelas palavras mais ou menos desconhecidas que o rapaz vociferava. "tive que contactar a empresa fornecedora do software para que corrigissem a falha. Por seu lado, essa referida empresa teve que recorrer a outra empresa que lhes presta serviços de consultoria em segurança de dados para dar o melhor seguimento à situação. Com sorte, para a semana já tenho o problema resolvido. Senão, terei que accionar os meios necessários. O gabinete jurídico intervirá caso este fornecedor não cumpra com o que foi pré-estabelecido no caderno de encargos. Mas eles, coitados (os do gabinete jurídico) também andam muito ocupados no aconselhamento de uma outra empresa, de recrutamento de recursos humanos".
O homem, sem compreender muito bem alguns dos conceitos que lhe haviam sido relatados, pousou cuidadosamente o copo na mesa, franziu o sobrolho, coçou a cabeça e após uma longa pausa, perguntou, com um tom de voz grave mas suave: "queira desculpar a minha ignorância mas... Os homens da empresa de computadores... Os que analisam os mercados... Os do gabinete jurídico... Os que dão conselhos... Os que trabalham com recursos humanos... O que è que essa gente toda produz mesmo? Parece ser muita gente para alimentar mas não vejo o produto... Eu, por exemplo, na minha horta, produzo muita coisa... Sei bem o que produzo porque também dali me alimento... Não consigo compreender o que è produzido que permite alimentar todas essas bocas, todas essas actividades.... Explique-me, pois de economia não percebo nada...".
O jovem economista olhava embevecido para o homem, tentando agora, por sua vez, assimilar o que tinha acabado de escutar. Olhou para a mesa, depois olhou para a namorada, e engoliu em seco, esquecendo o copo de agua que segurava na mão. Não tinha resposta para dar ao simples homem, que por sua vez se mostrou incomodado consigo próprio por ter causado visível embaraço ao futuro genro.
O que se passou no resto daquele jantar, no resto da vida destas personagens, não me diz mais respeito. Entrego o seu destino a outras mãos que não as da minha imaginação. Apenas retenho a ideia cervical que sobressai. Na nossa sociedade, o movimento económico esta desproporcionado da real produção. Quando me refiro a produção, não me refiro a maioria dos serviços que são prestados e que exemplifiquei enquanto retratava aquele jantar. Refiro-me aos bens e serviços necessários à sobrevivência e bem estar das pessoas. Realmente necessários. Destes, o sector primário ocupa no meu entender o papel principal. Tudo o resto è acessório, no entanto movimenta-se dinheiro e valores, títulos e ambições, juros e desesperos, em torno de algo imaterial e inócuo. Alguma vez o sistema será repensado? Será que deixaremos algum dia de parte o orgulho em manter o status quo e regressaremos a um patamar de humildade, relativo as actividades desempenhadas, realmente adequado ao nosso mundo? Enquanto isso não acontecer, e como consequência de outros factos igualmente estúpidos e tristes que todos podemos constatar a nossa volta, homens engravatados continuaram a suicidar-se saltando do decimo sexto andar dos seus escritórios, e continuarão a nascer crianças na pobreza. Não me sinto suficientemente acompanhado nesta visão para que vislumbre alguma esperança de alteração de rumo. Terei que ser suficientemente egoísta para tentar preservar o meu próprio bem estar, e o bem estar daqueles que amo. Tudo o resto tentarei ignorar. Para não me cansar. Orgulhosamente sós, como nos foi incutido, não descobriremos mais mundos novos. Apenas descobriremos os vermes que nos hão-de devorar, indiferentes à nossa historia de vida. Para eles, somos todos iguais.

Gatos vadios

Os gatos vadios vão-se equilibrando sobre os vagões abandonados. As suas unhas unem-se de paixão à ferrugem do metal, perpetuada pelas marcas que lembram os desenhos de uma criança. Enquanto isto, a noite cai, assim como as tuas lágrimas. Os gatos continuam a equilibrar-se nos vagões. Não distingo entre sonho e alucinação, ao ver-me de repente fumando ópio à mesa com Fernando Pessoa. Divagamos por caminhos inexplorados. O que desce sobre nós no momento em que nascemos? Que matéria nos penetra o físico e nos dota de espírito? Da minha observação dos gatos não encontro nenhuma resposta. Tu ainda choras. E a noite ainda cai.

Dualidades

Corpo e Espírito
A minha presença aqui não significa nada. Todos os sons que possam dela advir, todos os gestos emanados e todas as palavras vociferadas sem sentido tornam-me prisioneiro da minha existência. Preciso de mais. Tu queres mais. Queres ver-me da perspectiva inédita que me deixa exposto e permeável ao teu juízo. A perspectiva com que a ave fita a presa, vulnerável, percorrendo de forma errónea o chão quente de uma tarde de verão. A minha matéria, as minhas células e compostos, a minha física e a minha química fazem-me teu prisioneiro. Preciso que o meu espírito intervenha e me resgate. O espírito livre da matéria, sem que para tal ocorra a morte da mesma, é por enquanto uma utopia. E logo eu, que sabes que abomino qualquer conceito metafísico, anseio finalmente por essa verdadeira libertação. Não encontrei outra solução nem vislumbrei outra saída. Tenho que enfrentar os meus preconceitos e superar as barreiras que construí. Se quero chegar mais além, tenho que me superar.
Não te iludas. Continuo a não acreditar na espiritualidade vulgar que nos circunda. O meu objectivo não se relaciona com ela. O meu objectivo supera-a. A minha vontade cerca-a e elimina-a. Desaparece para sempre da minha vida e não mais me atormenta. Devias observar-me agora enquanto domino por instantes todas as crenças que sempre odiei, enquanto elimino o folclore que me enjoava até agora.
Desafiei as forças mais adoradas e na minha imaginação derrotei-as uma a uma. O Espírito venceu. A liberdade sobreviveu e conduziu-me à felicidade. Se a minha felicidade é assim tão ridícula como os actos que a originaram, então a minha presença aqui deixou de se justificar…

Presença e Ausência
A minha presença aqui não significa nada… já o havia dito. Por isso não te incomodes comigo. Passo mais uma vez apenas para não te deixar indiferente. Evito portanto o teu incómodo e a tua indiferença. Espero que uma acção não comprometa a outra, pelo menos não é essa a minha intenção.
Tal como a minha presença, todas as presenças que povoam a terra nada significam. É como se não estivéssemos cá. As feridas que agora abrimos apenas causarão o nosso desaparecimento, e depois disso a terra poderá voltar a ser o que era. Livrar-se-à de quem a desprezou e massacrou durante uma infinidade, imediatamente esquecerá esse episódio e retomará a sua jornada para lado nenhum.
De que serve então esta melindrosa teia que tecemos descoordenadamente senão para servir os nossos propósitos egoístas e inconsequentes? Nem para as gerações que nos sucedem, nem para as que nos precedem, nada fazemos de positivo.
E também como a presença da população na terra, e dos vermes sob ela que nos aguardam, a minha presença nas tuas recordações acabará por se revelar inconsequente, mais tarde ou mais cedo. Não me acredito capaz de influir no teu percurso, e muito menos acredito que tal facto seria positivo, caso ocorresse. Por isso, pensa em mim como permanentemente ausente. Tu és a terra. Eu sou quem a povoa. Eu desaparecerei, devorado pelos teus vermes, mas tu continuarás a tua órbita incansável e precisa.

Terra e Céu
Sobre nós, contudo, continuam a pairar as estrelas. Belas e luminosas, são a nossa recordação permanente da extensão do infinito, e mesmo na minha ausência continuarão a banhar-te em tons de prata e a maravilhar quem em ti habitar. São a tua bênção permanente mesmo que todas as crenças deixem de ser credíveis, mesmo que todos os paradoxos se tornem lógicos e exequíveis.
É essa a maravilhosa expressão de imensidão que trazes contigo, e o fascínio permanente que exerces em mim. Particularmente em mim.
Hoje à noite protejo-te do frio que se instalou nos últimos dias. Ontem foste tu quem me protegeu da escuridão que me cercava e ameaçava. Ordenaste às tuas estrelas que brilhassem como nunca o haviam feito, os teus lobos uivaram sem cessar e as tuas montanhas serviram-me de refúgio. Não me recordo exactamente do que se passou durante as horas em que mantive os olhos fechados. Mas lembro-me distintamente do carinho e conforto que derramaste em mim. Enquanto o vento passando pelas árvores parecia sussurrar palavras de amor, a minha imaginação abraçava-te e trazia-te até mim. Finalmente eternizava a tua presença perto de mim, e com um sorriso nos lábios, embalado por este cenário, adormeci. Quando acordei, estava aqui contigo. Éramos nós, um só, terra sob o céu.

Dia e Noite
Amanheceu solarengo o dia seguinte. Os raios de luz invadiam toda a tua extensão e aqueceram o meu corpo a ponto de o fazer suar. O meu despertar foi calmo e cheio de felicidade. A minha desilusão desaparecera e a minha descrença tornara-se a minha força. As tuas feições meigas e suaves fizeram-me sorrir, e em ti encontrei também o meu próprio amanhecer.
Sempre procurei a compreensão nos locais mais desadequados, e nunca alinhei os meus ideais com os meios e objectivos que se lhe adequassem. Mas hoje sinto que toda a tendência se inverteu, e que por todo o este dia infinito tudo se conjugará na forma mais perfeita.
Tal como a noite persegue o dia, também as minhas assombrações do passado me perseguem. Fujo delas e encontro mais estilhaços. Contorno as ruínas, tropeço e caio nos teus braços… acordo… já é dia.

Luz e Escuridão
A luz entra agora massivamente pela janela do quarto. Cerro os olhos feridos pela intensidade luminosa. Ao contemplar os contornos do teu corpo, a fluidez da tua pele, a cadência dos teus movimentos respiratórios, recordo-me do dia em que todas as crenças me renegaram, e toda a esperança me abandonou. Numa memória perversa, lembro-me do percurso exacto das minhas lágrimas enquanto desciam os contornos do meu rosto. O entardecer, e a sua luminosidade característica daquela altura do ano (era ainda final do verão), tornavam os campos ainda mais belos, mais resplandecentes. As vinhas exuberavam todo o seu esplendor, e a chuva que caiu em consequência da trovoada do dia anterior tinha conferido à terra uma tonalidade mais suave e agradável, menos áspera. Nesse dia tinhas-me abandonado definitivamente, e também eu tive vontade de te abandonar, apesar da beleza que se atravessava no meu olhar.
A paisagem continuava a desfilar, veloz, diante de mim. Progressivamente, penetrei numa escuridão imensa que me recuso a descrever. Hoje, a escuridão cessou. Trouxeste-me de novo a manhã e com ela a esperança. Hoje começo a viver, iluminado por ti.

Construção e Destruição
Sentado à secretária teclo furiosamente mais algumas palavras, tentando escapar ao sono que persiste em me toldar o pensamento. O dia foi cansativo e bem sei que deveria entregar de imediato o corpo ao descanso, mas não é isso que a minha mente pede, não é para já esse o meu rumo… Levanto os olhos em direcção às notícias na TV… passam o resumo do debate no parlamento. Os argumentos ocos, as ofensas sem sentido, as frases gastas e inconsequentes… Aquele circo faz-me sorrir. Quantas mais vezes cederemos à tentação de depositar a nossa esperança nas mãos daqueles que não sabem sequer manejar uma flor…
Embrenhado nestes pensamentos, começo a ceder ao cansaço. A cabeça pende, os olhos cerram-se, e o sono abraça-me e transporta-me para outras dimensões. Vejo-me agora pairando sobre ti, observando maravilhado a tua vastidão. Num olhar mais atento, vejo que se abrem rachas no chão. Do nada irrompem elevações enormes, e consigo ouvir os gritos de pânico das pessoas que correm desnorteadas sem saber muito bem o que se passa. Edifícios desmoronam e deflagram incêndios. De repente, acordo deste pesadelo profundo. Na TV sucedem-se os comentários sobre o debate. Um dos intervenientes diz que os nossos governantes nos desgovernam. Eu iria mais além: Os nossos governantes não sabem que nos levam de mão dada a caminho da destruição.
Há muito que deixámos de construir. Tudo o que evoluímos desde o limite que ficou perdido lá atrás tornou-se regressão. Não sei até que ponto essa regressão se irá desenvolver. Mas ao observar-te no meu pesadelo, quebrada e destruída, vislumbrei o teu nascimento, quando ainda eu não existia.



Sorrisos e Lágrimas
Um padre católico acaba de baptizar uma criança. Uma menina de três anos, que agora pela mão dos pais, sorri aparentemente feliz.
Um condenado à morte vê concedido o seu último pedido. A sua mulher, que recentemente perfez quarenta e sete anos, beija-o pela última vez. Ele sorri, aparentemente feliz.
Um jovem asiático pega na mão da sua futura esposa. Sussurra-lhe juras de amor eterno e coloca-lhe um anel no dedo. Ela sorri, aparentemente feliz.
Um homem olha para baixo, para a multidão que vagueia nas ruas da sua metrópole. O sistema financeiro a que ele se entregou está podre e moribundo. A crise social agrava-se e todos os dogmas em que ele acreditava se desvanecem. Cerra os punhos e salta do décimo sexto andar. Enquanto isso, a sua mulher tem um orgasmo com o amante. Ela sorri, aparentemente feliz.
Um pai solteiro recebe o filho de quinze anos que chega a casa vindo da escola. Nas mãos, as notas do último semestre. Notas excelentes, um aluno exemplar. O pai sorri, aparentemente feliz.
Uma mãe chora desesperadamente no enterro do seu filho, vítima de acidente de automóvel no dia anterior. Tudo aquilo que construiu para ele, todas as esperanças, todos os sonhos, esfumaram-se naquela estrada molhada pela chuva intensa. A mãe ajoelha-se junto do caixão, e também nessa altura a chuva cai intensamente. O filho receava não conseguir dizer-lhe o quanto a amava enquanto ela fosse viva. Agora é ela que lamenta não o ter dito pela última vez. Sem despedida nem confissões, a partida do filho foi tão inesperada quanto dolorosa para ela. Ela chora. Não podia estar mais infeliz.

Brisa e Tempestade
Enquanto os ramos da grande árvore oscilam lenta e hipnoticamente, a uma cadência aparentemente aleatória, o som do atrito das folhas da copa cria um clima de paz e serenidade. Para além de algumas buzinas que ecoam no centro da cidade, e do chilrear de meia dúzia de pássaros que ali encontrou pouso, mais nada se ouve. Agora, sou só eu, a árvore e o vento, que me embala em viagens de fantasia.
Há oito meses atrás, sob esta mesma árvore, beijei-te pela primeira vez. Lembro-me do acelerar do coração no meu peito, parecia que se iria autodestruir. O calor dos teus lábios inundou-me de desejo e paixão. Ainda sinto a mesma paixão. Ainda sinto a mesma emoção. O coração ainda bate forte quando penso em ti. A tempestade de sentimentos que despertas no meu ser é cada vez mais fascinante e incompreensível. Desafia toda a lógica e chega mesmo a ser irracional. Mas eu gosto de gostar de ti assim. Pena não estares agora aqui comigo. A brisa que sopra por entre as árvores seria ouvida pelos dois, e os dois repetiríamos esse beijo. O teu desaparecimento, porém, torna esse cenário impossível. Bem sei que as autoridades tudo têm feito para te encontrar, mas eu já não acredito no teu regresso. Porém, sei que onde quer que te encontres, estás à minha espera.

Método e Improviso
Ontem já não acreditava em mim. O controlo que julgava possuir sobre todos os aspectos da minha vida revelou-se oco e desprovido de alicerces. Sempre metódico, julgava conseguir reunir num conjunto de pensamentos todas as variáveis que, no alinhamento correcto, me conduziriam à felicidade. Nada mais errado. Nada do que pensamos controlar corre sobre os nossos carris. Não há possibilidade de resumirmos tudo aquilo que desejamos a um bloco de apontamentos ou a um conjunto de notas soltas. Assim, decidi: improvisarei a vida a cada segundo que passar por mim. Não mais cederei à escravidão do método. A minha ciência chama-se felicidade, e a ela declaro lealdade.

Sacrifício e Recompensa
Sangue nas veias, artérias dilatadas, corpo em pleno funcionamento. Todos os órgãos cumprem a sua missão, todos os músculos se contraem. Ao empenho da mente, às descargas de adrenalina, o corpo corresponde com vigorosa transformação de energia. Os estímulos são sempre diferentes, mas a reacção é sempre poderosa e conclusiva. Barreiras superadas, obstáculos derrubados, metas ultrapassadas. Etapa após etapa, construía o meu percurso. Assim era eu. Assim era eu até me paralisares na tua teia e me negares a existência tal como eu a idealizava..
Posso dizer que me ensinaste a obter as recompensas de forma alternativa. A forma como observo hoje os desafios na minha vida é diametralmente oposta ao que acontecia dantes. Ensinaste-me as virtudes da paciência e os prazeres da espera. Agora, sigo no mesmo caminho que tu, e levanto a cabeça em direcção ao sol nascente.

Esperança e Desilusão
Se por esta altura as tuas expectativas apontavam no sentido de um maior conhecimento sobre mim, digo-te desde já que serás desiludida. As escolhas com que preencho a minha vida podem causar-te estranheza ou mesmo provocar a tua condenação sobre elas. Mas são minhas, e essa riqueza não me pode ser retirada.
Criei um espaço exíguo na minha mente para onde remeto agora todas as recordações de tempos negros e obscuros. Só entro nesse espaço quando necessito de reafirmar perante o meu ser a necessidade de encarar a vida de uma certa forma, e de agir segundo determinadas convicções. Sem más recordações para nos relembrar quais são as escolhas acertadas, simplesmente não teríamos escolhas acertadas. Por isso, sinto que devo conservar em mim todas as experiências que me são oferecidas.
Se sentires desilusão por falta de imprevisibilidade, não tornes a ler estas linhas. Porque num segundo para ti fui o que nunca esperavas, e isso basta para ambos sorrirmos…

[11-07-2010]

Ruído do ponteiro dos segundos

Quinta-feira à noite, 27 de Janeiro. Uma noite fria, surpreendentemente fria quando os últimos dias pareciam trazer algum sol que uma por outra vez até deu para aquecer a pele. Todo este dia foi assim, frio. Não sei se por isso, mas hoje senti-me particularmente desiludido e crítico em relação a muita coisa. O tempo tem destas coisas, este poder magnânimo de influenciar o nosso humor e disposição. Entre os largos minutos ocupados com alguns assuntos mais aborrecidos do trabalho, intrometiam-se frequente e insistentemente momentos de reflexão sobre as mais variadas situações. Talvez também por isso esteja agora, neste momento, a escrever para ti. Sei que não te incomodarei com este texto, do qual ainda não conheço a extensão, até porque tens o fantástico poder de o simplesmente ignorar sem que a ele dediques qualquer tipo de atenção. Sei no entanto que não o farás. Mas o facto te possuíres esse poder recorda-me de uma forma simples como por vezes sem dar conta, e rotineiramente, desprezamos o autêntico milagre que é sermos dotados de livre arbítrio, desperdiçando a sua utilização em formas estúpidas e inconsequentes. Um político que age em interesse próprio, ou até que mente, em vez de decidir de acordo com a missão de que foi investido pelos seus eleitores, alguém que comete um crime de colarinho branco, roubando não por necessidade (acto que compreendo inequivocamente) mas por ganância... Todos esses actos ignóbeis que se repetem vezes e vezes sem conta, todos os segundos que passam por esta terra polvilhada de vida (por completo e sublime acaso), todos esses actos me fazem questionar a razão de termos sido bafejados pelo sopro da vida. Um miserável grão de areia povoado pelas criaturas mais abjectas.... e no entanto, todos nós nascemos inocentes. O que a humanidade atingiu, é impressionante. O que ainda pode atingir, é inimaginável. Mas a forma idiota como constantemente a própria humanidade age contra si própria e contra a sua evolução, é assustadora. Pode parecer exagerado, condenar assim sem julgamento meia dúzia de ladrões e cobardes por crimes contra a humanidade. Mas se por um momento tentares executar o somatório de todas as acções relacionadas... se pensares nas consequências que esse somatório tem na nossa vida.... não hesitarás em ser tu própria a executar a sentença, que seria certamente a condenação à morte. Talvez penses que perdi a fé na humanidade (que lugar comum mais ridículo), mas não é assim. Apenas me impressiona o caminho que percorremos até aqui e a forma como poderíamos ter seguido outras vias... como as poderíamos seguir neste momento. Bastava boa vontade. Mas a opção de escolha entre múltiplas vias com que somos confrontados a cada instante, à escala individual de cada um, é igualmente suficiente para nos ocupar inutilmente os pensamentos por bastante tempo. Esquerda ou direita, sim ou não (ou talvez), ir ou ficar... todas essas escolhas somadas e as suas interacções com outras próprias e de terceiros, perfaz o nosso Mundo. Talvez por isso a religião se tenha instalado entre nós de uma forma tão intensa e assustadora. Trata-se apenas do confronto com as dificuldades das escolhas, e das suas repercussões quando de pensa na hipótese negada. Para mim, é o que resume a existência da religião, mal necessário e comum a todos. Mesmo quem se proclame ateu não se livra do "direito" a um funeral segundo as tradições da religião dominante. E ao deitarem sobre o meu caixão algumas pazadas de terra, serei convertido a essa religião. Não terei como escapar. Não terei opção, já não poderei fazer escolhas. Nada ficará por decidir, tudo encera ali, simultaneamente com a minha conversão.
Triste fim para um desgraçado que nada mais terá a opinar sobre os desígnios da humanidade, ou outras futilidades que tal como agora por vezes ocupam esta mente distorcida. Mais tarde ou mais cedo, para todos nós, chegará esse sublime momento. Enquanto isso, em vez de progredir como comunidade una e em prol do mesmo objectivo, como souberam fazer os nossos antepassados dos quais dizemos muito menos evoluímos, continuamos a enganar e mentir apenas para rumarmos à nossa auto-destruição. No meio deste circo, quem sofre são as pessoas de alma pura, que ainda acredito existirem. Terá muito que se lhe diga, este conceito de pessoa de alma pura, principalmente vindo de quem clama ser tão terreno e que não acredita nestas coisas da alma. Mas foi a melhor expressão que encontrei para catalogar esta categoria de pessoas. Sabes a que me refiro. E não é por acaso que me dirijo a ti, pois sei que és uma delas.
Até os poetas e iluminados, que por um lado tanto admiro, me desiludiram. Uns, a maior parte, sucumbiram precocemente a vícios que os devoraram até à morte. Outros, desprezaram a pobreza e outras condições menos nobres, por trazerem humilhação, devido às suas próprias origens. Tento evitar as mesmas metáforas fáceis e gastas com que abundantemente tenho sido confrontado. Mas essa tentativa sai invariavelmente frustrada. A pureza, a perfeição, que tanto persigo, acaba por me trair e esfaquear-me à traição. A metáfora fácil espreita sempre a cada esquina. A imperfeição e a impureza são fáceis de encontrar. Acabarei por não lhes resistir. A resistência é relativa.
Resta-me a memória dos antepassados que, esses sim, orgulhosamente sós (no sentido positivo, ao contrário da época na qual teve origem a expressão), enfrentaram o desconhecido nas suas frágeis embarcações e trouxeram glória a esta nação, hoje resignada à sua inexpressão. O retrocesso foi enorme e será difícil de compensar. A futilidade dos nossos objectivos traiu os nossos heróis. É verdadeiramente devastador e triste.
Bom, mas deixemos a condição humana em paz, pois nada do que possa acrescentar neste pequeno ensaio trará alguma mudança ou reflectirá os meus verdadeiros sentimentos em relação a toda a sua envolvente, sentimentos demasiado bizarros, à luz dessa mesma condição, para que possam ser expressados. Não quero falar mais das minhas desilusões. Acabaria por te cansar, se é que não o fiz já.
O ponteiro dos segundos e o seu ruído estridente recorda-me sem piedade o passar do tempo, o meu maior inimigo, e recorda-me também de ti. Esse meu inimigo é também teu inimigo. Sonho com o momento em que o tempo para, que nos permite tudo aquilo que desejarmos, jogando apenas com as restantes dimensões. O tempo poderia ficar de fora, apenas desta vez... Mas é assim que me sinto quando comunico contigo. Sinto que tens esse poder, de por momentos indefinidos suprimir uma dimensão, e declarar tréguas nesta guerra sem quartel.

[27-01-2010]

Fantasia

Abres os olhos devagar… tudo parece calmo e tranquilo. Está escuro… silencioso… de repente um sentimento de inquietude e pavor invade-te. As mãos estão atadas atrás da cadeira… não sabes onde estás…. Aquele pedido de sequestro… aquela brincadeira inocente… concretizou-se. Nunca pensaste que ele fosse capaz! Pelo menos não estás amordaçada… Porque não estás tu amordaçada? Gritas por ajuda… gritas por socorro… mas o único som que consegues ouvir é o do teu eco… De certeza que é um local isolado… por isso não te amordaçou… ninguém te consegue ouvir…
Não devias ter aceitado aquele convite para o café de uma forma tão leviana… tão inconsciente. Se pelo menos tivesses avisado alguém, deixado uma pista onde ias…. Sem ninguém para dar pela tua falta, estás entregue a ti própria. E o raio das cordas que estão tão bem apertadas…
Tentas perceber onde estás… que o local é isolado, já sabes…. Tentas perceber a orientação do local pela ténue luz do luar que entra pelo que parece ser uma janela. Mas na tua cabeça o pânico toma conta de ti, o raciocínio torna-se menos claro. Tentas manter a calma… não chorar…. De repente ouves parar um carro lá fora. O teu coração acelera. Ouvem-se passos e uma porta que se abre. Um rangido ensurdecedor da madeira inchada pela humidade… depois a porta fecha-se e mais passos ouvem-se já próximos de ti. A tua respiração está ofegante, descontrolada. O medo toma conta de ti, o pavor inunda a tua face. Perguntas “és tu? Quem está aí?” mas obténs como resposta um silêncio aterrador. Sabes que ele está atrás de ti… não sabes o que te vai fazer… Um psicopata que vive escondido na internet à espera da sua presa… “Porquê eu?”
Sentes as suas mãos no teu cabelo… Primeiro de forma gentil, depois de forma brusca, com um puxão para trás. O silêncio mantém-se. Começas a chorar… Mas as suas mãos limpam-te lágrimas. De seguida, sentes os seus lábios, primeiro na tua face… depois na tua boca. Agora sentes um misto de emoções: Medo, pavor, mas ao mesmo tempo segurança e carinho…
Ele continua atrás de ti… agora desabotoa-te a blusa… Beija-te o pescoço… Sentes um arrepio intenso.
As suas mãos acariciam-te os seios… tira-te o soutien… os seus dedos percorrem-te de uma forma sensual… sentes-te excitada. A tua pele reage… os poros abrem-se, os pêlos erguem-se…. Perguntas “o que me vais fazer?” mas mais uma vez não obténs resposta.
Sentes agora que ele está à tua frente…

A caixa

Na rua onde moro a calçada fica frequente e perigosamente molhada pela chuva fina ou “cacimba” que nos tem visitado na maioria destes dias de Janeiro. Tem sido um mês atípico em termos de clima, um mês em que dias soalheiros alternam com estas visitas envergonhadas da chuva. Tento passar indiferente sob a mesma quando saio à rua e tento colmatar a solidão em que vivo mergulhado através do contacto com a demais população das redondezas. População que sempre tendi a desprezar, nunca a valorizar. Nunca consegui retirar benefícios óbvios da sua existência, pelo menos até hoje. Tão inócua, tão vaga, tão… vazia… não me consigo rever nesta comunidade. Tenho dificuldade em comunicar com ela, sinto renitência em mergulhar nela.
Nada fiz para mudar esta situação. Nada tentarei fazer. Sem planos para o futuro e sem memória do passado preocupo-me com o dia a dia, hora a hora, minuto a minuto… vivendo no mais profundo egoísmo que, até prova em contrário, me confere uma vaga sensação de felicidade. Não necessito dos outros. Nunca necessitei (penso eu, uma vez que a ausência de memória de um passado recente me impede te ter certezas).
São as memórias mais distantes que me atormentam, especialmente à noite. Confundo a virtual realidade da minha infância e adolescência com os sonhos que todas as noites me fazem companhia. O crescimento, na companhia dos meus pais, a escola, a puberdade… e depois tudo se começa a desvanecer… até ao dia em que conheci o amor da minha vida… apenas para tudo se esfumar. Não sei se foi real ou não. Apenas sei que vivi (sonhei?) a mais absoluta felicidade…. Mas uma noite acordei e era um sonho… Nunca a conheci. Não sei se ela existe. E se existe, não sei se ela sabe que eu existo. Essa angústia tolda-me o cérebro e é minha companhia permanente. Todas as noites e todos os dias.
Hoje as gordas do jornal não me trazem nada de novo. As mesmas intrigas de sempre, a mesma falta de parcialidade, a mesma tendência para valorizar o que não tem valor…Enjoo com tudo isto. Procuro o cesto do lixo mais próximo e cumpro o meu dever.
Está frio, muito frio. Um frio que se entranha nos ossos e que constringe os movimentos. Apresso o passo. Não paro de pensar nela. De pensar no meu passado que não sei se algum dia existiu. Não sei como vim aqui parar e isso perturba-me. Foda-se, ela era linda…. Era linda… Como foi possível perdê-la? O meu pior pesadelo tornou-se realidade.
A chuva intensifica-se. Escureceu bastante. Não consigo livrar-me dos meus pensamentos mais sombrios. Mas estou quase em casa….
Mesmo ao virar da esquina, ao tentar esquivar-me da indiferença de todos os rostos que se cruzam comigo, deparo com uma jovem rapariga sentada, à chuva, num dos pequenos e velhos bancos de jardim que pontuam nesta parte da cidade. Era um daqueles típicos bancos de jardim, verde, mas já com a oxidação do metal a denegrir o seu aspecto outrora elegante. Não consigo evitar de olhar para ela. A sua imagem magnetiza-me. Tento olhar os seus olhos mas ela tem a cabeça baixa. Nas mãos segura algo que não consigo discernir. Paro uns metros mais à frente e sou forçado a voltar atrás. Aproximo-me lentamente dela. Deverá ter uns 8, talvez 9 anos. É morena, de aparência bem tratada e cuidada. Vejo agora o que segura nas mãos: é uma pequena caixa de madeira de aspecto bastante antigo. Ela segura a caixa e limita-se a observá-la. Fiquei curioso, mas também receoso. Não sei se estabeleça contacto com ela ou não. Tento aproximar-me ainda mais, sem que ela repare em mim. Sinto-me num filme de série B, e especulo comigo próprio que mistérios ou que horrores contém a pequena caixa. No entanto, sem que me tenha apercebido, por esta altura já a rapariga fixou os seus olhos nos meus. Senti um estremecimento, tentei de imediato desviar o olhar mas não consegui. Ambos olhamos os olhos um do outro por uns bons 5 minutos. Sem dizer nada. Sem uma palavra. De repente, ela levantou-se e pegou-me na mão. Ela estava gelada. Mas senti-me reconfortado pelo seu contacto. Pousou a caixa de madeira no banco e começou a guiar-me, segurando sempre a minha mão, por ruelas que nunca antes tinha percorrido, que nem sabia existirem. Caminhámos durante imenso tempo, sempre por ruas diferentes, aparentemente sem destino. Enquanto isto, a chuva parou, as nuvens dissiparam-se como por magia e começaram a aparecer as estrelas.
Finalmente ganhei coragem para lhe perguntar: “O que tem aquela caixa?”. Ela olhou para mim e sorriu, mas nada respondeu. Continuámos a andar. Levou-me até uma rua aparentemente deserta, e finalmente parou de andar. Olhou-me novamente nos olhos, e num momento que parecia livre dos constrangimentos da passagem do tempo, disse:
“O teu percurso até aqui nada tem que significar. O que fizeste até hoje, o que sentiste, o que pensaste, o que viveste, o que sonhaste, será completa e infinitamente inútil perante a imensidão de caminhos que a vida te proporciona. Escolhas o que escolheres, parecer-te-á sempre o mais errado. Escolhas o que escolheres, e estarás um passo mais próximo da morte, um gesto mais afastado da vida. Vive o presente como se não tivesses mais um segundo de vida. E então reencontrarás quem mais amas.“
Depois, virou-me as costas e começou a caminhar na direcção oposta. Eu fiquei imóvel, sem conseguir dizer nada, completamente absorto do ruído estridente provocado pelo gato que entretanto derrubara um caixote do lixo ou das sirenes de uma ambulância que acorria para socorrer alguém em apuros algures na cidade.
Ao chegar a fundo da rua, a menina parou, virou-se para mim e disse: “ A caixa não tinha nada, estava vazia”.
E eu ali continuei, paralisado, no centro daquela metrópole polvilhada de vidas mais ou menos inúteis, protegido sob a imensidão do lençol de estrelas que sobre nós se estende até ao infinito. Apenas consegui sorrir.

[07-09-2009]

Revisitando Poe

No final da semana passada, depois do trabalho, resolvi percorrer as ruas de Évora durante alguns minutos. Cruzei-me com os mais variados tipos de pessoas que, aparentemente indiferentes ao meu olhar, procuravam ums sombra como refúgio ao intenso calor ou finalizavam uma sessão de compras. Assim o fiz também, procurei refúgio do calor, e acabei por me sentar numa acolhedora esplanada que visitei pela primeira vez. Pedi algo, já não me recordo muito bem o quê, e continuei a observar quem passava por ali... senti-me um pouco como a personagem do Edgar Allan Poe no "Homem da Multidão"... O meu olhar fixou-se numa mulher de meia idade que ali estava sentada, lendo qualquer coisa que não consegui discernir o que era. Talvez uma revista femenina. Havia qualquer coisa de intrigante nela. Mas há sempre qualquer coisa de intrigante se fixarmos o olhar numa qualquer personagem... experimenta fazer isso.. Eu aprendi a o fazer há uns anos, quando acatei os conselhos de várias pessoas que me diziam "não podes ficar assim... sai de casa... vai ver pessoas... faz-te bem....".
A senhora continuava a sua leitura sempre inquieta, uma vez que frequentemente espreitava para um lado e para o outro, como se estivesse à espera que algo acontecesse. Enquanto isso, eu imaginava quais seriam os pensamentos daquela mulher, qual seria o seu modo de vida, as suas ansiedades, expectativas, segredos mais profundos... a vida de cada ser humano é uma imensa mistura de sensações variadas, algumas totalmente opostas que se cruzam com uma frequência alucinante... Um equilbrio das nossas emoções que permita uma percepção de felicidade em deterimento da infelicidade é procurado por todos nós, em todos os minutos, a todos os segundos...
A senhora laventou-se apressadamente após olhar para o telemóvel, e a pouco e pouco desapareceu do meu campo de visão. Paguei a minha conta e, ao contrário da história do Poe não a segui, apesar da curiosidade.