domingo, 10 de julho de 2011

O jantar

Era impossível disfarçar a ansiedade. Esfregava as mãos ásperas e calejadas uma na outra vigorosamente, não conseguia parar quieto. Deveria acontecer precisamente o oposto, afina de contas estava prestes a conhecer o futuro genro, mas o facto deste ser recém-formado em economia... Enfim... Alguém com estudos superiores... Não deixa de causar num simples agricultor alguma ansiedade e receio de... Enfim... Dizer algo impróprio.... Alguma calinada... Ou de fazer algo com maus modos ou de forma pouco educada.
"este jantar foi uma ma ideia", pensou para com os seus botões. "só espero não deixar a minha filha envergonhada".
Embrenhado nestes pensamentos, assustou-se com o ruído seco do rodar da fechadura. A porta abriu-se e os pensamentos receosos depressa deram lugar ao encantamento e deslumbre ao contemplar a filha, maravilhosamente vestida e maquilhada, que acabara de entrar na sala. Já não a via há 3 meses. Os estudos eram motivo de prolongadas ausências que acentuavam as saudades. Logo atrás, surgiu um rapaz alto e elegante, sorridente e aparentemente confiante. Era aquela a figura que representava, possivelmente, o futuro genro. Boa apresentação... Culto... Inteligente... E intimidatório, perante a pouca escolaridade daquele humilde homem do campo. Carlos trindade... Muito prazer... Arménio Lopes... Prazer... Replicou o anfitrião. Com o decorrer das apresentações e seguidamente do jantar, o Sr. Arménio ganhava cada vez mais confiança. "O rapaz ate parece simpático" , pensou. Os temas de conversa sucediam-se naturalmente, de forma fluida e despretensiosa. Os olhares ternurentos e apaixonados que o casalinho trocava enternecia o agricultor alentejano, viúvo há pouco mais de um ano. A mulher havia sido apanhada por um cancro, que não lhe dera muitas possibilidades de resistir, tendo sucumbido em menos de seis meses. "Quem me dera que a minha Rosário estivesse aqui".
Entre uma e outra garfada de migas, falava-se agora do trabalho do jovem economista. "É verdade Sr. Arménio, o trabalho lá em Lisboa não me da tréguas. Tenho imensas tarefas a meu cargo e que me ocupam muito tempo. Veja bem que ainda esta semana vi o estudo que tenho vindo a desenvolver, sobre a instabilidade actual dos mercados, quase ser comprometido por uma falha no software de analise de dados que utilizo como base desse estudo". o agricultor bebeu mais um golo de vinho, enquanto tentava assimilar todas aquelas palavras mais ou menos desconhecidas que o rapaz vociferava. "tive que contactar a empresa fornecedora do software para que corrigissem a falha. Por seu lado, essa referida empresa teve que recorrer a outra empresa que lhes presta serviços de consultoria em segurança de dados para dar o melhor seguimento à situação. Com sorte, para a semana já tenho o problema resolvido. Senão, terei que accionar os meios necessários. O gabinete jurídico intervirá caso este fornecedor não cumpra com o que foi pré-estabelecido no caderno de encargos. Mas eles, coitados (os do gabinete jurídico) também andam muito ocupados no aconselhamento de uma outra empresa, de recrutamento de recursos humanos".
O homem, sem compreender muito bem alguns dos conceitos que lhe haviam sido relatados, pousou cuidadosamente o copo na mesa, franziu o sobrolho, coçou a cabeça e após uma longa pausa, perguntou, com um tom de voz grave mas suave: "queira desculpar a minha ignorância mas... Os homens da empresa de computadores... Os que analisam os mercados... Os do gabinete jurídico... Os que dão conselhos... Os que trabalham com recursos humanos... O que è que essa gente toda produz mesmo? Parece ser muita gente para alimentar mas não vejo o produto... Eu, por exemplo, na minha horta, produzo muita coisa... Sei bem o que produzo porque também dali me alimento... Não consigo compreender o que è produzido que permite alimentar todas essas bocas, todas essas actividades.... Explique-me, pois de economia não percebo nada...".
O jovem economista olhava embevecido para o homem, tentando agora, por sua vez, assimilar o que tinha acabado de escutar. Olhou para a mesa, depois olhou para a namorada, e engoliu em seco, esquecendo o copo de agua que segurava na mão. Não tinha resposta para dar ao simples homem, que por sua vez se mostrou incomodado consigo próprio por ter causado visível embaraço ao futuro genro.
O que se passou no resto daquele jantar, no resto da vida destas personagens, não me diz mais respeito. Entrego o seu destino a outras mãos que não as da minha imaginação. Apenas retenho a ideia cervical que sobressai. Na nossa sociedade, o movimento económico esta desproporcionado da real produção. Quando me refiro a produção, não me refiro a maioria dos serviços que são prestados e que exemplifiquei enquanto retratava aquele jantar. Refiro-me aos bens e serviços necessários à sobrevivência e bem estar das pessoas. Realmente necessários. Destes, o sector primário ocupa no meu entender o papel principal. Tudo o resto è acessório, no entanto movimenta-se dinheiro e valores, títulos e ambições, juros e desesperos, em torno de algo imaterial e inócuo. Alguma vez o sistema será repensado? Será que deixaremos algum dia de parte o orgulho em manter o status quo e regressaremos a um patamar de humildade, relativo as actividades desempenhadas, realmente adequado ao nosso mundo? Enquanto isso não acontecer, e como consequência de outros factos igualmente estúpidos e tristes que todos podemos constatar a nossa volta, homens engravatados continuaram a suicidar-se saltando do decimo sexto andar dos seus escritórios, e continuarão a nascer crianças na pobreza. Não me sinto suficientemente acompanhado nesta visão para que vislumbre alguma esperança de alteração de rumo. Terei que ser suficientemente egoísta para tentar preservar o meu próprio bem estar, e o bem estar daqueles que amo. Tudo o resto tentarei ignorar. Para não me cansar. Orgulhosamente sós, como nos foi incutido, não descobriremos mais mundos novos. Apenas descobriremos os vermes que nos hão-de devorar, indiferentes à nossa historia de vida. Para eles, somos todos iguais.