domingo, 26 de dezembro de 2010

Dimensão tomada por sentidos

Na rua os sonhadores refugiam-se em abrigos iluminados por conceitos obscuros
Aqui, sobre solo sagrado,
Por uma eternidade profanado,
Um sonhador perde-se na embriaguez da incerteza dos instantes futuros

O mestre espera-me! O ídolo de ouro baço grita “acordem”...
E eu olho em redor e perco-me num ou noutro pormenor
Ignoro o chamamento em troca do amor intemporal
Ao ouvido sussurram-me que lá fora o temporal
Ainda é um mal pior.

Linda adorada...
Não confundas chamamentos, mesmo que construídos de ilusões
Com os tormentos da chuva e dos trovões.

O tempo já não me basta, prefiro ignorá-lo
Se numa dimensão o instante importa
Prefiro então sofucá-lo.

O tempo ganha-se com o esquecimento!

[29/3/2003]

Ensaio sobre tempo e sentimentos

I
É difícil tentar explicar o amor,
Sentimento que acredito que sinto por ti,
Apesar de não o conseguir definir.
Desde que falei contigo pelas primeiras vezes
Senti algo que tentava explicar a mim próprio
Mas não conseguia...
Pelo meio, construí várias hipóteses:
-              A procura de uma amizade
Que me servisse de amparo em momentos de maior angústia
-              Uma curiosidade em conhecer cada vez mais a tua personalidade fascinante
Que me intrigava de dia para dia
-              Uma mera atracção física...?

II
Não sei.
Desde então o tempo passou com o seu passo certo
Marcando trilhos nas nossas vidas
Que não mais serão apagados da nossa memória.

Esses trilhos que foram sendo abertos pelo tempo,
Percorro-os vezes sem conta, reavivando memórias.
Exploro-os, redescubro-os, e penso sem raciocinar.
Não vou pensar agora nesses trilhos
Que nos conduziram até ao tempo que é definido como hoje, agora.

Tento deixar de compreender
Como são construídos os caminhos que nos unem.
Diz-me tu agora,
Vale a pena compreender ou recear sentimentos ou (re)acções
Nas quais apenas o tempo nos conduz,
Trilhando novos caminhos que desconhecemos
E não podemos prever?

O presente não chegou a ser e já passou.
O momento presente é definido pela parte racional da nossa mente,
Conjugada com as emoções .
O presente não chegou a ser e já passou.
O momento presente é definido pela parte racional da nossa mente,
Conjugada com as emoções.
É presente desde e até que nós definamos.
No meu presente, definido por mim, estou contigo,
Percorrendo juntos o trilho que para nós vai sendo aberto.

O horizonte está ao alcance da palma da mão.
Agarra-o comigo. Vamos viver juntos o tempo.

III
Se eu te amo, é o tempo que me conduz. Presente.

[28/3/2003]

A história

Uma história não começa sem uma caneta
Uma caneta não age sem um papel

Amor entre tinta e papel
Inerte sem a paixão de um pensamento
Pensamento abandonado sem uma ilusão
Ilusão perdida sem o desplante de um momento

O momento nasce, cresce, apodera-se, vinga-se
Torna-se soberano do seu mestre
Enraíza-se na sua mente
Desmente crenças do eterno crente

As suas raízes destroem as sementes de amor poético
Mata esperanças de sonhos ingénuos
E planta desesperos e loucuras
Espalha mágoas e amarguras

Escrevo a história desta história
Do seu fim já não tenho memória
Traço palavras pela mão do mestre soberano
O manto de horror que se tornou meu amo

O dia finda com a chuva a molhar o empedrado
O pôr-do-sol não se revela, escondendo por trás da esperança
A nuvem da minha história encobre raios de ilusões perdidos
E substitui por mortes todas as ridículas vidas

Rastejo para a minha sombria caverna
Saindo do purgatório, entrando no inferno
A história diz-me “odeia os que te amam”
Vomito as maldições que os meus demónios me mandam

A história cava por minhas mãos
A sepultura onde ingenuamente vislumbro esperanças
Os filhos da história, vermes vestidos de gala
Esperam o meu sono e as dores que o embalam

A noite é o seu eterno banquete
E a história alimenta os seus filhos da minha podridão
Ofereço-me com prazer ao meu sofrimento
Para a minha dor que eu próprio alimento

Pela madrugada já esqueci os beijos
De uma amada que foi apenas adorada
Agora é a história que me adora
Pela morte que já não demora
Desperto de uma história para outra
De um temor passo a um horror
A minha história pode também ser a tua
Basta numa noite encoberta desvendares a lua

A história crucifica felicidades
Enterra vidas recém nascidas
Sepulta esperanças por despontar
Goza da virtude de saber matar

Para ti escrevo uma história
Aceita-a e procura a tua
Ninguém nos ensina a viver
A nossa história ensina a morrer

Arrasta comigo a nossa sombra
Enterra-a junto às almas devoradas
Apaga a vida do altar agora em chamas
Chama a morte e diz-lhe que a amas

É a história que faz todo o sentido
Não te apercebes? O milagre é um pesadelo
Adão e Eva traçaram-nos o destino
Resta-nos uma história de horror divino

E outra madrugada se levanta
E outros esquecimentos me atormentam
Mas afinal qual é esta história?
Quem se apoderou da nossa memória?

É o anjo que nos oferece protecção sem motivo
É o corvo que diminui um cadáver vivo
É a flor que embeleza um cemitério deserto
É o cangalheiro que fecha o cadeado deixando o inferno aberto

E as mãos erguem-se do chão
Puxam os iludidos miseráveis para a escuridão
No meio da névoa alguém grita
“Por favor, não fechem o caixão!”

Das torneiras jorra veneno
A lua está sempre encoberta por uma nuvem vermelha
Chove sangue que nos abençoa ao cair de cada noite
E outra história permite que nela pernoite

Faz da minha história a tua
Sente o ardor da morte da vida, nua e crua
Fecha os olhos e sente o sangue cair na palma da mão
Agora sente o desvanecer da vida revelada ilusão

Veste o teu vestido de gala, admira os teus ossos ao espelho
Vamos conhecer o escritor que nos tem possuído
Agora digo-te que o seu nome é eternidade
Vais ver que por um poema vale a pena ter morrido

São mais do que tinta e papel condenados à efemeridade...
É a história que tenho vivido

Ainda não terminei...

Religião que arrasta o mundo para a escuridão
Jesus que chacina a vida pelo imundo chão
Ai Mãe e Pai, que me ofereceram luz
E sempre cravaram os pregos da minha cruz
Padre e poeta que pregaram palavras
Seres não humanos que dos pensamentos germinam larvas
Pensadores, ignorantes
Amigos, seres aberrantes
Salvadores, iluminados
Morrerão todos pela história, enforcados

Condeno pela minha história todo o infinito
Por infinitas imperfeições mancharem o meu ser
A minha história acaba aqui
E começa quando um dia morrer

[20/3/2003]

No teu amor

Perdi-me num vazio abandonado
Agora rastejo para junto da cruz
Enfrento cada noite com desdém
Mas em todas elas acabo derrotado
Derrubado por forças de ninguém
Fecho os olhos para contemplar a luz
Teço uma oração não interessa a quem

Ao nascer do dia eu confesso
Pequei um dia e pequei outra vez
Ao passado condenei meu corpo ressequido
Ao futuro prometi o que sempre esqueço
Caí há muito num sonho perdido
Entreguei-me à fulgurante insensatez
Que me leva agora ao teu refúgio escondido

Abriga-me no amor dos teus braços
Desta tempestade de chuva e vento
Deixa-me adormecer ao som do teu coração
Aqui contigo esqueço os meus fracassos
Encontro esperança no aperto da tua mão
Liberto a alma e o pensamento
És santuário para a nossa paixão

Desponta no amor que tenho por ti
Uma luz que não mais me cega
Das trevas que confundi com penumbra
Acordei para o sonho que sempre vivi
Escuto contigo o que a noite murmura
Adormeço à luz da lua que na noite navega
Embalado pelo amor que em nós perdura

[16/2/2003]

Eu sou

Eu sou o que está aqui
Sou quem desperta as sombras
Eu sou o nada que se espalha pela terra
Sou o sentimento que se disfarça de luar
E que cobre de nevoeiro a vastidão da serra

Eu sou o que já conheceste
Sou o soberano que governa a tua mente
Eu sou o feitiço que aflige a liberdade
Sou a prece que em pranto sussurras
E que torna a ilusão em realidade

Sou eu, o egoísmo transformado em demência
Loucura e arrogância fruto de uma nobre ciência
A arte e o saber de apenas existir

Eu sou o mago que ilude os teus olhos
Sou o artesão que tece verdades na tua mente
Eu sou o riacho revolto que te arrasta
Sou o transtorno que te acorda em sobressalto
E que em cada novo dia de mim te afasta

Eu sou um poema que dorme em ti
Sou a aragem que percorre o teu corpo
Eu sou fio que suporta a tua presença
Sou o caminho que te leva à vida
E que serpenteia por mim com indiferença

Sou o esconderijo para a tua revolta
Sou o refúgio para os teus beijos
Sou as ruínas do teu futuro
Sou o cemitério dos teus desejos

Sou quem ilumina o teu quarto quando queres dormir
Sou o demónio que te perturba quando queres paz
Sou o calabouço de que não consegues fugir
Sou aquele que sempre procuras
Quando de sonhar já não és capaz

[4/1/2003]

De sentidos e desconhecidos

Mais almas novas vêm hoje ao mundo
De imediato são por ele para sempre tocadas
E assim recomeça a velha história
Seres destinados a viverem sem vida
Até um dia morrerem sem memória
Apenas mais uma criatura perdida...

Há algo aqui que não nos pertence
Torna milagres em sonhos sem sentido
Não sei se está em nós ou sequer se está presente
Mas sinto a sua existência
Disfarça-se de esperança para entrar na mente
Cavalo de Tróia da demência

É perturbadora, a sua presença
Sinto-a para onde quer que vá
Está no ar, está na terra
Persegue-nos a todos sem razão
É a paz que ama a guerra
Resta-nos apenas a rendição

Tento de dia para dia, de noite para noite
Esconder-me no escuro da luz que vem para nos cegar
Tento fugir, mas não consigo
A sua vastidão é abominável
Não há refúgio nem abrigo
Ninguém pode ignorar o inevitável

Neste mundo de desalentos
Procuro reconforto nos enganos das palavras
Na minha mente esqueço momentos
De sentidos não me resta nenhum
E se hoje procuro novos lamentos
De desconhecidos quem me dera um

[14/12/2002]

Num só segundo

Num segundo se desfaz uma promessa
Noutro segundo beijo o teu esquecimento
Para logo depois outra promessa nascer
Fruto da ternura de um só momento

Num segundo se derrama uma lágrima
Noutro segundo floresce um sorriso
E assim o eterno engano perdura
Embalando dois amantes sem juízo

Num segundo se vislumbra o abismo
Noutro segundo percorremos a felicidade
Como se uma estranha magia nos seguisse
Transformando as sombras em amor e amizade

Foi num só segundo
Que me apaixonei por ti
Apenas num segundo
Nos teus olhos me perdi
E apenas num segundo
Beijando os teus lábios doces
Esqueço tudo o que sofri

Num só segundo vislumbro o fim
Noutro segundo vislumbramos a eternidade
Juntos construiremos um novo mundo
Só nosso, amantes predestinados
Sonhando apenas num segundo
O nosso mundo de felicidade

[2/12/2002]

O sentimento

A definição? Poética? Não, não acredito que exista uma definição poética.
E uma patética? Se calhar, sim, para ti pode ser patética.

Antes que as chagas sarem guarda na mente a visão do momento presente

O abrir de olhos tornou-se mais hesitante e vagaroso.
E olhar-me nos olhos? Também é assim tão doloroso?

De uma fuga para um lugar ausente chegámos a um ponto indiferente

Escondo-me no refúgio do teu carinho, adormeço dentro de um beijo teu
E se algum dia a vela se apagar, vais lembrar-te deste amor teu?

Hoje o luar parece diferente,  talvez por esconder uma luz inconsciente   

A palavra é melhor se for achada, um sentimento é ideal se for perdido
E a voz que te fala ao coração, ainda de diz que será comigo?

Não te esqueças de seguir em frente, mesmo se aprisiono o teu olhar inocente

[30/11/2002]

Fronteiras

Mais
Lembranças renegadas por limites que há muito se enraizaram em nós
Luz
Que ofusca as verdadeiras razões que se embrenham nas sombras
De
Um pensamento a mais perdemos a oportunidade de libertação
Sem
Consciência de algo concreto por sonhos imaginados
Por
Caminhos tortuosos que nos desorientam
Alma
Perdida em rios de palavras insignificantes
Se
Algum dia os sacrifícios nos despertaram para o inferno de existências
Foi
Apenas o relembrar de algo esquecido nas nossas mentes atarefadas
Ser
Simplesmente humano ou parte de um milagre aleatório
Tua
Ideia de vida ignora todas as que pensei reais
Onde
Errámos nós ao longo deste esforço a dois
Lua
Olha-nos com desdém e amaldiçoa a nossa vaga felicidade
Um
Beijo termina em sangue que escorre dos nossos lábios
Vai
Depressa de volta para o teu mundo
Com
Recordações falsas de segundos imaginários
Aqui
Resta apenas uma imagem pálida de frustrações disfarçadas de vidas
Em
Algum lugar deixarei a chama da esperança extinguir-se
Por algum dia conseguir ver o que tu não conseguiste

[24/11/2002]

O meu anjo

O meu anjo ata-me as mãos atrás das costas
Fecha-me os olhos e diz para confiar nele
Entretanto adormeço e o meu anjo desaparece
Procura outra mente e chora outra prece

O meu anjo acaricia-me o corpo
Entrega-me a felicidade nos braços
Faz com que a chuva se dilua no seu chão
Prolonga a esperança desfeita de razão

O meu anjo não me ilude
Limita-se a alimentar ideias perdidas
Recupera memórias ausentes
Vive comigo os lamentos presentes

O meu anjo responde sempre que sim
Apenas nega o que sempre recuso
Aclara a evidencia dos momentos perdidos
Proclama a luz de mil dias sofridos

O meu anjo nunca me abandona
Morre comigo sempre que eu quero
Partilhamos o mesmo coração
Sou vítima de uma frágil adoração

O meu anjo tem as asas rasgadas
As armações corroídas pela indiferença
Diz-me que nunca mais viverá um dia
Rouba-me do corpo a minha alma vazia

[23/11/2002]

Fuga de mim / Insensível

Vejo que o meu inimigo já adormeceu
Por detrás daquele monte coberto agora de uma estranha paleta de cores
Caiu finalmente de cansaço, depois de um dia inteiro a assombrar-me

Vejo que a minha amiga se aproxima, vagarosa, despercebida
Contrastando com o pano de fundo que cada vez perde mais luminosidade
Chamando a minha atenção para um refúgio acolhedor e familiar

Quando me apercebo eu de que já não passo despercebido?
O amor é uma peça de arte que a meus pés se quebrou
No momento em que me chamaram para voltar de onde vim
Quando ao sentimento de conforto nada mais restava do que esconder-se
Por detrás da ignorância vivida em cada som que me tocou.
E se estou perdido na terceira alternativa ao sono que não me larga
Então o adormecer torna-se um acto patético
Quase tão ridículo como o título de uma referência que a mente guarda
Mas apenas temporariamente
Enquanto razões maiores não me tomarem a liberdade e findarem o sonho.
E estiveste tu à espera que os segundos passassem...  não percebeste?
Merda, não percebeste que o ponteiro voltava para trás? Não estava parado...
É diferente, agora que observamos tudo do passado.
Nunca pensei que a falsidade pudesse ser tão evidente
É como uma embriaguez que tenta negar a sua existência
Só para provar que existe uma lucidez para além da demência.
Não precisávamos disto. Bastava a vida como nos foi fornecida
Sem condições especiais ou qualquer garantia.
É claro que podemos sempre alterar as regras do contrato.
Pena é que essa liberdade seja apenas momentânea.
Quanto mais forte for mais... o tempo não esteve constante hoje.
Pelo espelho vi uma vida a escoar-se.
A abandonar rapidamente o centro de todas as atenções.
Muitas luzes e muitas cores! É irónico. O palco não serve apenas o propósito
Para o qual pensamos estar a representar. As luzes cegam-me.
Este é o outro lado do pesadelo que passou diante dos teus olhos. É simples.
É esse momento de paz que perturba o ténue equilíbrio
Mantido pelos dois fios unidos no mesmo ponto superior
Um sustentando a hipótese que nunca perturbou o normal curso da causa
O outro relembrando a todo o momento que o caminho não é linear.
Mais...
Foi, não, é um diamante com o centro de um negro perturbador
Um negro tão azulado que os nossos olhos se podiam perder para sempre.
É difícil notar a diferença. Foi o que eu disse. Afinal o ponto é comum. Único.

[22/11/2002]

Se

Algo simples...
Mostra-me algo simples
Como o teu primeiro pensamento desta manhã
Algo complexo...
Mostra-me algo complexo
Como o teu último gesto de um longo dia
Um acto final de magia
Um deslumbre para o meu ser
Mesmo se for algo sem nexo
Não posso deixar de te ver

Ontem à noite sonhei que sonhava contigo
Sonhei que podia ver o teu rosto
Iluminado pelo luar de uma noite mágica
Desse sonho vem a minha esperança
De ti vem a força que me faz olhar o futuro
Como se o novo dia nascesse de um desejo de criança

Repousar os meus lábios nos teus beijos
Olhar o teu olhar
Respirar o teu respirar
Sentir o teu tocar
Sonhei que sonhava sem adormecer

Acordo agora envolto em realidade
Do outro lado do vidro a chuva cai num tom solitário
As saudades que tenho por ti, minha amada
Aumentam ao ritmo do bater do meu coração
Mais uma vez beijo a moldura onde estás retratada
Vivo só para ti, meu amor, minha paixão

Se eu e tu sonhássemos o mesmo sonho
Cruzando olhares por entre as mesmas estrelas da mesma noite
Se partilhássemos os mesmos entusiasmos e os mesmos sofrimentos
Traçando o mesmo plano de felicidade
Se sentíssemos nos pés todas as pedras do mesmo caminho
Numa jornada de amor e amizade
Se numa qualquer tarde de sol encoberto
Captássemos da mesma melodia as mesmas ilusões
Então este poema seria
Mais do que um aglomerado de emoções
Mais do que uma mera descrição de sensações
Mais do que todos os pensamentos que já vivi
Seria o realizar do meu amor por ti

[12/10/2002]

Meio vivo

São as águas passadas
Que movem os moinhos da minha insanidade
Quando olho para trás
E vejo restos de tempos sem necessidade
São tempos que levaram parte de mim
Tempos que me deixaram num inferno sem fim

E é em cada vez
Que relembro o passado
E tudo o que perdi
É em cada vez
Que recordo o que não posso viver
E tudo o que não vivi
É todas as vezes, folheando um qualquer livro
Que sinto que estou meio vivo

São mágoas viciadas
Que abrem buracos no meu coração
Quando olho o futuro
E vejo o meu corpo num caixão
São sentimentos que me tornam no que sou
Sentimentos de um ser que não sabe se te amou

E é em cada vez
Que espero que me respondas
E tu nada dizes
É em cada vez
Que penso que nós os dois
Poderíamos ser felizes
É todas as vezes, chorando sem motivo
Que sinto que estou meio vivo

[27/5/2002]

Declínio

Os passos que percorrem a calçada de pedra
Ecoam pelas ruas estreitas da cidade
Um homem ainda adormecido pela luz do dia
Perde a vontade própria, e sem necessidade
Leva a cabo um acto de loucura
Sobre a jovem existência que ali dormia.
Num recanto dessa rua sombria
Solta o grito que agora perdura
É o declínio!
Finalmente, o encontro com o nosso destino

Hoje toda a tristeza é possível
Como uma chuva imperceptível
Que se revela à luz dos candeeiros de rua
Tal como uma mulher à janela, nua,
Que olha estarrecida para o cão
que rasga a carne crua.
Hoje já ninguém acredita no impossível.
Todos pensam que não há nada
que não possam ignorar.
Filhos de deus, a noite chora
Ninguém vê a noite a chorar?
É o declínio!
A vitória da luz brilhante
Sobre a escuridão, nossa amante

Ignorando o choro da noite
Uma criança é abandonada à sua sorte
Alguém ao telefone
Dá a notícia da sua morte
Uma mulher diz que é engano
Não foi nenhum ser humano
É o declínio...

[22/5/2002]

Mais algumas horas

Imponho o sofrimento a mim próprio
Porque me falta a coragem para agir
Não me posso esquecer de mim
Nem sequer evitar as interrogações
Das horas futuras que me restam
Dessas horas que tenho que viver
Sei que preferes que diga
Que são as horas que posso viver.

Mais algumas horas...
Esta noite vão passar
Mais algumas horas
Amanhã vão passar
Mais algumas horas
Horas sem te ver
Horas que vou perder
Horas por passar
Horas que não posso recusar
Horas desconhecidas
Horas sem serem vividas

Não sei quantas mais páginas serão escritas
Nem sei se alguma vez as vou ler
Como memórias de um excerto passado
Ou como evidências das horas futuras
Não sei se as vou renegar
Ou se um dia as vou louvar
As horas perdidas ninguém as acha
As horas que faltam ninguém as conta

[11/5/2002]

Outras horas

A morte do meu futuro

No futuro, o que eu quero ser...
Quero ser morto
Quero ser esquecido
Como se nunca tivesse vivido
Quero superar a vida
Quero ser nada
Menos que uma recordação abandonada
Por favor, por favor...
Nunca mais quero pedir por favor
Nunca mais quero ficar preso às palavras
Não quero mais sentir dor
Deixa-me ser nada
Deixa-me acabar.
Não sei como vai ser
Não sei quando vai ser
Não sei se me vais deixar
Preciso de ti para morrer

O futuro da minha morte

Sem luz, só a escuridão
Sem corpo nem matéria
Sem dimensão
Sem tudo e sem nada
É todos os sonhos que nunca imaginei
É todos os pesadelos que nunca temi
Tudo por nada, minha amiga...
Tudo por nada

[11/5/2002]

Horas mortas

Mortas... sem actividade cerebral
Insensível aos estímulos artificiais
Interrompidas pela obrigação diária
Ouço a televisão nas minhas costas
Tento não encarar as minhas origens
Prefiro não ter opinião
Volto a tentar morrer
Volto a tentar escrever
E talvez consiga algo
Que me possa fazer feliz
Já que não posso amar nada
E não consigo odiar muito mais
Só quero ser insensível
E ter horas mortas.
Mais vale não ter nada
Do que recordar-me do que perdi
Recordar-me do que não vivi.
Nem recordações quero ter
Por favor deixem-me morrer
Tu... tens que me deixar ir...
Deixa as horas passar
Deixa anoitecer
Quero deixar de sofrer

[11/5/2002]