domingo, 10 de julho de 2011

Ruído do ponteiro dos segundos

Quinta-feira à noite, 27 de Janeiro. Uma noite fria, surpreendentemente fria quando os últimos dias pareciam trazer algum sol que uma por outra vez até deu para aquecer a pele. Todo este dia foi assim, frio. Não sei se por isso, mas hoje senti-me particularmente desiludido e crítico em relação a muita coisa. O tempo tem destas coisas, este poder magnânimo de influenciar o nosso humor e disposição. Entre os largos minutos ocupados com alguns assuntos mais aborrecidos do trabalho, intrometiam-se frequente e insistentemente momentos de reflexão sobre as mais variadas situações. Talvez também por isso esteja agora, neste momento, a escrever para ti. Sei que não te incomodarei com este texto, do qual ainda não conheço a extensão, até porque tens o fantástico poder de o simplesmente ignorar sem que a ele dediques qualquer tipo de atenção. Sei no entanto que não o farás. Mas o facto te possuíres esse poder recorda-me de uma forma simples como por vezes sem dar conta, e rotineiramente, desprezamos o autêntico milagre que é sermos dotados de livre arbítrio, desperdiçando a sua utilização em formas estúpidas e inconsequentes. Um político que age em interesse próprio, ou até que mente, em vez de decidir de acordo com a missão de que foi investido pelos seus eleitores, alguém que comete um crime de colarinho branco, roubando não por necessidade (acto que compreendo inequivocamente) mas por ganância... Todos esses actos ignóbeis que se repetem vezes e vezes sem conta, todos os segundos que passam por esta terra polvilhada de vida (por completo e sublime acaso), todos esses actos me fazem questionar a razão de termos sido bafejados pelo sopro da vida. Um miserável grão de areia povoado pelas criaturas mais abjectas.... e no entanto, todos nós nascemos inocentes. O que a humanidade atingiu, é impressionante. O que ainda pode atingir, é inimaginável. Mas a forma idiota como constantemente a própria humanidade age contra si própria e contra a sua evolução, é assustadora. Pode parecer exagerado, condenar assim sem julgamento meia dúzia de ladrões e cobardes por crimes contra a humanidade. Mas se por um momento tentares executar o somatório de todas as acções relacionadas... se pensares nas consequências que esse somatório tem na nossa vida.... não hesitarás em ser tu própria a executar a sentença, que seria certamente a condenação à morte. Talvez penses que perdi a fé na humanidade (que lugar comum mais ridículo), mas não é assim. Apenas me impressiona o caminho que percorremos até aqui e a forma como poderíamos ter seguido outras vias... como as poderíamos seguir neste momento. Bastava boa vontade. Mas a opção de escolha entre múltiplas vias com que somos confrontados a cada instante, à escala individual de cada um, é igualmente suficiente para nos ocupar inutilmente os pensamentos por bastante tempo. Esquerda ou direita, sim ou não (ou talvez), ir ou ficar... todas essas escolhas somadas e as suas interacções com outras próprias e de terceiros, perfaz o nosso Mundo. Talvez por isso a religião se tenha instalado entre nós de uma forma tão intensa e assustadora. Trata-se apenas do confronto com as dificuldades das escolhas, e das suas repercussões quando de pensa na hipótese negada. Para mim, é o que resume a existência da religião, mal necessário e comum a todos. Mesmo quem se proclame ateu não se livra do "direito" a um funeral segundo as tradições da religião dominante. E ao deitarem sobre o meu caixão algumas pazadas de terra, serei convertido a essa religião. Não terei como escapar. Não terei opção, já não poderei fazer escolhas. Nada ficará por decidir, tudo encera ali, simultaneamente com a minha conversão.
Triste fim para um desgraçado que nada mais terá a opinar sobre os desígnios da humanidade, ou outras futilidades que tal como agora por vezes ocupam esta mente distorcida. Mais tarde ou mais cedo, para todos nós, chegará esse sublime momento. Enquanto isso, em vez de progredir como comunidade una e em prol do mesmo objectivo, como souberam fazer os nossos antepassados dos quais dizemos muito menos evoluímos, continuamos a enganar e mentir apenas para rumarmos à nossa auto-destruição. No meio deste circo, quem sofre são as pessoas de alma pura, que ainda acredito existirem. Terá muito que se lhe diga, este conceito de pessoa de alma pura, principalmente vindo de quem clama ser tão terreno e que não acredita nestas coisas da alma. Mas foi a melhor expressão que encontrei para catalogar esta categoria de pessoas. Sabes a que me refiro. E não é por acaso que me dirijo a ti, pois sei que és uma delas.
Até os poetas e iluminados, que por um lado tanto admiro, me desiludiram. Uns, a maior parte, sucumbiram precocemente a vícios que os devoraram até à morte. Outros, desprezaram a pobreza e outras condições menos nobres, por trazerem humilhação, devido às suas próprias origens. Tento evitar as mesmas metáforas fáceis e gastas com que abundantemente tenho sido confrontado. Mas essa tentativa sai invariavelmente frustrada. A pureza, a perfeição, que tanto persigo, acaba por me trair e esfaquear-me à traição. A metáfora fácil espreita sempre a cada esquina. A imperfeição e a impureza são fáceis de encontrar. Acabarei por não lhes resistir. A resistência é relativa.
Resta-me a memória dos antepassados que, esses sim, orgulhosamente sós (no sentido positivo, ao contrário da época na qual teve origem a expressão), enfrentaram o desconhecido nas suas frágeis embarcações e trouxeram glória a esta nação, hoje resignada à sua inexpressão. O retrocesso foi enorme e será difícil de compensar. A futilidade dos nossos objectivos traiu os nossos heróis. É verdadeiramente devastador e triste.
Bom, mas deixemos a condição humana em paz, pois nada do que possa acrescentar neste pequeno ensaio trará alguma mudança ou reflectirá os meus verdadeiros sentimentos em relação a toda a sua envolvente, sentimentos demasiado bizarros, à luz dessa mesma condição, para que possam ser expressados. Não quero falar mais das minhas desilusões. Acabaria por te cansar, se é que não o fiz já.
O ponteiro dos segundos e o seu ruído estridente recorda-me sem piedade o passar do tempo, o meu maior inimigo, e recorda-me também de ti. Esse meu inimigo é também teu inimigo. Sonho com o momento em que o tempo para, que nos permite tudo aquilo que desejarmos, jogando apenas com as restantes dimensões. O tempo poderia ficar de fora, apenas desta vez... Mas é assim que me sinto quando comunico contigo. Sinto que tens esse poder, de por momentos indefinidos suprimir uma dimensão, e declarar tréguas nesta guerra sem quartel.

[27-01-2010]