domingo, 26 de dezembro de 2010

A história

Uma história não começa sem uma caneta
Uma caneta não age sem um papel

Amor entre tinta e papel
Inerte sem a paixão de um pensamento
Pensamento abandonado sem uma ilusão
Ilusão perdida sem o desplante de um momento

O momento nasce, cresce, apodera-se, vinga-se
Torna-se soberano do seu mestre
Enraíza-se na sua mente
Desmente crenças do eterno crente

As suas raízes destroem as sementes de amor poético
Mata esperanças de sonhos ingénuos
E planta desesperos e loucuras
Espalha mágoas e amarguras

Escrevo a história desta história
Do seu fim já não tenho memória
Traço palavras pela mão do mestre soberano
O manto de horror que se tornou meu amo

O dia finda com a chuva a molhar o empedrado
O pôr-do-sol não se revela, escondendo por trás da esperança
A nuvem da minha história encobre raios de ilusões perdidos
E substitui por mortes todas as ridículas vidas

Rastejo para a minha sombria caverna
Saindo do purgatório, entrando no inferno
A história diz-me “odeia os que te amam”
Vomito as maldições que os meus demónios me mandam

A história cava por minhas mãos
A sepultura onde ingenuamente vislumbro esperanças
Os filhos da história, vermes vestidos de gala
Esperam o meu sono e as dores que o embalam

A noite é o seu eterno banquete
E a história alimenta os seus filhos da minha podridão
Ofereço-me com prazer ao meu sofrimento
Para a minha dor que eu próprio alimento

Pela madrugada já esqueci os beijos
De uma amada que foi apenas adorada
Agora é a história que me adora
Pela morte que já não demora
Desperto de uma história para outra
De um temor passo a um horror
A minha história pode também ser a tua
Basta numa noite encoberta desvendares a lua

A história crucifica felicidades
Enterra vidas recém nascidas
Sepulta esperanças por despontar
Goza da virtude de saber matar

Para ti escrevo uma história
Aceita-a e procura a tua
Ninguém nos ensina a viver
A nossa história ensina a morrer

Arrasta comigo a nossa sombra
Enterra-a junto às almas devoradas
Apaga a vida do altar agora em chamas
Chama a morte e diz-lhe que a amas

É a história que faz todo o sentido
Não te apercebes? O milagre é um pesadelo
Adão e Eva traçaram-nos o destino
Resta-nos uma história de horror divino

E outra madrugada se levanta
E outros esquecimentos me atormentam
Mas afinal qual é esta história?
Quem se apoderou da nossa memória?

É o anjo que nos oferece protecção sem motivo
É o corvo que diminui um cadáver vivo
É a flor que embeleza um cemitério deserto
É o cangalheiro que fecha o cadeado deixando o inferno aberto

E as mãos erguem-se do chão
Puxam os iludidos miseráveis para a escuridão
No meio da névoa alguém grita
“Por favor, não fechem o caixão!”

Das torneiras jorra veneno
A lua está sempre encoberta por uma nuvem vermelha
Chove sangue que nos abençoa ao cair de cada noite
E outra história permite que nela pernoite

Faz da minha história a tua
Sente o ardor da morte da vida, nua e crua
Fecha os olhos e sente o sangue cair na palma da mão
Agora sente o desvanecer da vida revelada ilusão

Veste o teu vestido de gala, admira os teus ossos ao espelho
Vamos conhecer o escritor que nos tem possuído
Agora digo-te que o seu nome é eternidade
Vais ver que por um poema vale a pena ter morrido

São mais do que tinta e papel condenados à efemeridade...
É a história que tenho vivido

Ainda não terminei...

Religião que arrasta o mundo para a escuridão
Jesus que chacina a vida pelo imundo chão
Ai Mãe e Pai, que me ofereceram luz
E sempre cravaram os pregos da minha cruz
Padre e poeta que pregaram palavras
Seres não humanos que dos pensamentos germinam larvas
Pensadores, ignorantes
Amigos, seres aberrantes
Salvadores, iluminados
Morrerão todos pela história, enforcados

Condeno pela minha história todo o infinito
Por infinitas imperfeições mancharem o meu ser
A minha história acaba aqui
E começa quando um dia morrer

[20/3/2003]